Ana Vargas
Tem tanta gente escrevendo sobre a polêmica das tais
biografias que eu pensei muito antes de também escrever sobre.
O assunto cresceu tanto
que, pelo menos lá no Observatório da Imprensa, tem rendido artigos semanais de autores de áreas variadas. Todos
querem opinar, todos odeiam ou amam o povo do grupo ‘procure saber’, todos amam
e odeiam os biógrafos, enfim, esse assunto ainda vai render muito.
Diante de tanto conflito, de réplicas e tréplicas, de tantas
argumentações baseadas na lei, no sagrado direito à privacidade e em tudo mais
que envolve o mundo da fama – porque no final é disso que se trata – temos
assistido cenas que bem poderiam resultar num belo filme ou num documentário
sobre essa nossa (louca) época.
E, sendo louca, eu infelizmente (como eu gostaria de ter uma
‘opinião formada sobre tudo’ ao contrário do que prega aquele cantor famoso)
não sei o que pensar, não tenho nada pronto, nem engatilhado nada...nada...
Primeiro, como pessoa que sabe o trabalho que dá pra fazer
um livro, fiquei inclinada a me posicionar do lado dos biógrafos. Fiquei
realmente tocada pela história do cara que trabalhou 15 anos (!!) no livro de
certa figura, na minha opinião, endeusada demais da conta da nossa decadente
MPB; e viu todo o seu trabalho impedido de cumprir o destino que lhe cabia: ir
pra’s livrarias, ser vendido, ser analisado, ser finalmente, lido! Já pensaram?
Que frustração imensa a dele?!
Depois, fiquei pensando no outro lado, o dos biografados...
E
me pus a imaginar a trabalheira que é tentar reconstruir a vida de alguém por
meio de documentos, entrevistas com pessoas que gostavam ou não gostavam do
fulano e por aí afora. Esse enxerimento na vida alheia dá o que pensar. E,
afinal, quanto de verdade há (haveria) no que os outros falam para os
biógrafos? Sim, pois se a conversa é com pessoas simpáticas a ele, quantas
amabilidades (palavrinha que teima em rimar com falsidades...) não serão ditas?
E, por outro lado: se a conversa é com a turma dos antipáticos ao fulano, quantas
meias verdades não poderão ser ditas com o intuito claro de denegrir a imagem
da criatura?
E lá nos arquivos e fotografias e memoriais de família
quanto poderia existir de realmente verdadeiro? É claro que dependendo de
certas questões que se queira analisar, tudo poderia ser facilmente comprovado
ali naquela certidão, naquele contrato... Mas eu fico pensando é no que escapa,
no que esta além dali do que se escreveu, se certificou, se fotocopiou e ficou
registrado para a posteridade.
Mas... e se a conversa fosse com o próprio fulano? E se, em
certo momento, biógrafo e biografado se vissem diante daquela história desconfortável
que aconteceu, por exemplo, em 1976 e se
fulano quisesse parecer menos vil do que foi, ou menos mesquinho e mais
bonzinho...?
Quebra-cabeças
Pois é: a vida de qualquer pessoa – seja famoso ou anônimo -
é um intrincado quebra-cabeças (perdoem o clichê) e eu ouso dizer que é
impossível a qualquer um que se disponha - seja ele de que área for, tenha ele a disposição
que tiver - compor com fidelidade a trajetória do fulano desde o nascimento até
os tempos nos quais a figura se tornou famosa e começou a adquirir aquela aura
luminosa que transforma pessoas até
então, comuns, em seres especiais.
Tudo isso se conquista com muito trabalho e bem sabemos nós,
os comuns mortais, que o que aparece depois é somente a cereja do bolo, a ponta
do iceberg e que nos bastidores, sob as dezenas de camadas de laquê ou de botox
ou de photoshop há simplesmente um ser humano que pode sim, ter sido vil,
mesquinho; pode mancar ou ter sido mau aluno na sexta série, pode ter mais rugas do que
aparenta e por aí afora...
Mas isso ninguém – é claro – quer mostrar.
E é aqui que entra o sagrado direito à privacidade, certo?
Pés de barro
Eu não sei quanto a vocês, mas eu nunca gostei de ler as
tais biografias autorizadas; se é autorizada é porque o biografado contou sua
versão (que pode ser qualquer coisa, verdadeira ou não), indicou e vetou
entrevistados, escolheu fotografias nas quais ele aparece bem e por aí afora. Estas
são as biografias chapas branca e nelas os fulanos famosos sempre vão aparecer
envolvidos por uma aura de heroísmo, perspicácia, bondade e etc.
Ali eles nunca
serão grosseiros, antipáticos, caloteiros, maus maridos ou péssimos filhos:
então, que graça tem isso?!
Pois se a vida de todos nós tem tantas situações variadas –
boas, ruins, alegres, tristes, péssimas- e nós, humanos, nos comportamos tantas
vezes da forma não esperada porque odiamos fulano que puxou nosso tapete ou porque
não conseguimos pagar aquele empréstimo em dia ou não pudemos chegar no horário
nem conseguimos disfarçar a antipatia por essa ou aquela pessoa...
Não é tudo
isso, afinal que enriquece a vida (bom, é preciso enxergar assim, segundo a autoajuda
rs). Não seriam as nuances de comportamento que tornariam as pessoas, de modo
geral, interessantes? Sejam elas o fulano famoso ou o colega que se senta ao
nosso lado num curso qualquer?
Então, porque é tão assustador (para alguns) que biografias
sejam escritas e que suas vidas sejam devassadas? Eles não queriam tanto estar
ali no alto, no cume, no lugar de destaque que os tornariam visíveis para todos os outros? Pois como explicar aos
outros, aos fãs ou não, que pra chegar ao cume foi preciso fazer isso e aquilo?
Coisas nem sempre belas e heroicas? Coisas às vezes bem distantes da imagem
rósea que o fulano teima em passar?
Mas e o direito à privacidade? Quem pode ou poderia obrigar
o fulano a mostrar todas as páginas do livro da sua vida?
Quem?!
Demasiadamente humanos
Pois, de minha parte, eu não me assustaria ao saber que o senhor
fulano tem essa ou aquela orientação sexual ou que ele foi um péssimo marido
para a senhorita X ou que ele nem viu os filhos crescerem tão ocupado estava
envolvido com drogas ou bebidas lá nos anos setenta ou oitenta...
Porque, afinal de contas, todos esses ‘pecados’ são
aceitáveis quando a gente se lembra que somos todos, imperfeitos, não importa se a mídia tenta revestir os
famosos fulanos com aquelas auras de quase santidade ou perfeição...
Ou se ao
contrário (porque a coisa é absurda e isso piora quando nos aproximamos dela,
da tal ‘fama’) se a imprensa sensacionalista quer dar um tom melodramático a
algo que nem teve toda essa importância na vida do fulano (um divórcio, uma
morte, uma falência).
O que acontece é que quando alguém é uma figura pública, sua
vida – com toda a beleza ou a feiura normais quando se trata de condição
humana, certo? – também é ‘pública’...
Ou não deveria ser assim?
É aqui que entra algo que faz toda a diferença: a maneira
como o fulano se posiciona diante da fama. Alguns como o fulano que proibiu o
livro, adquiriram aquela aura quase mítica que supostamente o coloca acima do
bem e do mal, mas lembremos: ele ainda é humano (quer dizer, acho eu rs) e
poderia se quisesse, não ter concedido a entrevista ao rapaz e poderia se
quisesse ter optado por ficar distante de tudo isso.
Nessa história toda, somente uma coisa é certa: biógrafos
têm razão quando alegam que as futuras gerações correm o risco de não saberem
nada sobre os fulanos e fulanas que hoje (por exemplo) estão aí ajudando a
construir com suas histórias pessoais o
presente (e o futuro que é feito dele) desse país.
E estão certos também os
biografados que alegam ter o direito à privacidade e a contar apenas ‘detalhes tão
pequenos’ de suas grandiosas vidas.
Quem poderá negar a eles esse sacro direito?
Não queria estar na pele de um biografado e nem na de um
biógrafo, disso eu sei; mas sei de uma coisa: eu nunca – mas nunca mesmo! –
gastaria meu suado dinheirinho comprando livros nos quais se vê a frase
‘biografia autorizada’; isso jamais!
CRÔNICA**CRÔNICA**CRÔNICA
Convido vocês a lerem e a darem uma passada lá no site, onde há cronistas de todo país exercitando esse estilo.
A mesma árvore
Todos
nós estivemos no mesmo lugar, à mesma hora, no mesmo dia e sequer havíamos
marcado encontro. Foi simples e natural
nossa ida àquele lugar sem que houvéssemos combinado. No domingo das lojas fechadas, algumas poucas
abertas; a praça estava cheia de idosos que dançavam músicas antigas dos tempos
grandiosos; de crianças levadas pelas mãos de seus pais atentos ou
displicentes; e havia ainda o córrego quase transbordante das chuvas da noite
anterior e suas águas barrentas e opacas e mais as nuvens carregadas da outra
chuva que haveria de cair dali a pouco (como de fato caiu). Era final de verão.
E,
no meio de tudo, nós que sequer havíamos marcado encontro, como já dito, nós
todos – a família, esse núcleo de criaturas humanas que se assemelham somente
porque dividem a mesma origem biológica –
nos espalhamos pelas alamedas da praça, nos juntamos quando a chuva se fez mais
forte sob o mesmo teto e eu me lembro das lojas cheias de turistas apressados e
ávidos por comprar e comprar - e nós todos, como todos os outros que ali
estavam, carregamos nossa solidão conscienciosos como se moradores de um
convento secular e pouco nos atrevemos a ir ao encontro de um ou outro de um
jeito que ultrapassasse a superficialidade daquele passeio singelo do domingo
de manhã.
Foi
assim que nós todos juntamos nossas ausências ali, no meio da praça do domingo
sob o sol ameno que depois se tornaria chuva incessante e, apesar disso ou
justamente por isso, é que soubemos intimamente (e isso é algo secretíssimo,
algo que só se conta em invencionices como essa ) que sim, somos de fato e
verdadeiramente uma família.
Pois
uma família é exatamente isto: carregar nossas solidões sob as intempéries do tempo
que recobre o mundo – seja ele qual for - e nos sentirmos acolhidos quando
somos fracos, quando estamos sob pingos grossos de chuva sem uma sombrinha
velha sequer que nos cubra ou quando ficamos adoentados e, ainda, quando
estamos com fome ou quando descobrimos com algum ranço de revolta ou resignação
que não há nem nunca haverá remédio para o fato de que nada que se faça nessa
vida vai mudar o rumo do que quer que seja – destino? Padrões genéticos? Filosofias
rasas ou complexas? Deus...? – e que,
nesse caso, é o fato de estarmos presos de forma definitiva a todos os outros
frutos e sementes dessa mesma árvore: a
família.
Essa árvore de tronco grosso como um
jacarandá, um carvalho ou uma paineira; árvore grandalhona e de galhos
compridos espalhados – alguns até se encontram
no topo ou nas laterais como que se buscando afoitos em meio à
arquitetura algo caótica e deslumbrante das folhas – que florescem nas estações
certas (apesar dos pesares), espalham suas sementes pelos chãos e pelos ares; estas
árvores quase petrificadas de tão remotas, estes verdadeiros monumentos
orgânicos que deixam entrever algo de Deus em suas folhas lustrosas, suas
grossas e duras cascas e suas (quase sempre) raras e tão esperadas flores.
Quando
vemos uma árvore dessas, assim antiquíssima, mas ainda resplandecendo seiva e
frescor, e a vemos envolta por pássaros numerosos e tão diversos como bem-te-vis,
anus, pardais ou sanhaços, e percebemos, quase comovidos, como elas oferecem à
paisagem dantesca desse mundo o frescor
luminoso de suas sombras bordadas na terra como se pinturas caprichosas
e tão delicadas...
...pois
quando estive diante de uma árvore dessas num domingo de manhã, entre os meus,
foi que pensei que uma família também é (ou deveria ser) como uma dessas
grandes (grandes) árvores: um lugar onde o afeto pudesse sempre ser
compartilhado de forma serena e nunca (nunca) fosse usado como moeda de troca
ou como as migalhas que às vezes somos obrigados a buscar em terras distantes –
como passarinhos desorientados - porque
a ‘nossa’ árvore se esqueceu de produzir alimento suficiente para todos.
E,
então, se assim fosse, nós todos seríamos como essas aves tão diversas de
origens e cantos que voam pra longe – para o sul ou para o leste – que
atravessam os céus de sob oceanos e caatingas, mas sempre retornam para os galhos dessas grandes e acolhedoras
árvores.
Uma
família deveria ser como as grandes árvores, isso eu pude apreender naquela
manhã.