sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Biografia? Só se for não autorizada!

Ana Vargas

Tem tanta gente escrevendo sobre a polêmica das tais biografias que eu pensei muito antes de também escrever sobre. 

O assunto cresceu tanto que, pelo menos lá no Observatório da Imprensa, tem rendido artigos semanais de autores de áreas variadas. Todos querem opinar, todos odeiam ou amam o povo do grupo ‘procure saber’, todos amam e odeiam os biógrafos, enfim, esse assunto ainda vai render muito.


Diante de tanto conflito,  de réplicas e tréplicas, de tantas argumentações baseadas na lei, no sagrado direito à privacidade e em tudo mais que envolve o mundo da fama – porque no final é disso que se trata – temos assistido cenas que bem poderiam resultar num belo filme ou num documentário sobre essa nossa (louca) época.


E, sendo louca, eu infelizmente (como eu gostaria de ter uma ‘opinião formada sobre tudo’ ao contrário do que prega aquele cantor famoso) não sei o que pensar, não tenho nada pronto, nem engatilhado nada...nada...

Primeiro, como pessoa que sabe o trabalho que dá pra fazer um livro, fiquei inclinada a me posicionar do lado dos biógrafos. Fiquei realmente tocada pela história do cara que trabalhou 15 anos (!!) no livro de certa figura, na minha opinião, endeusada demais da conta da nossa decadente MPB; e viu todo o seu trabalho impedido de cumprir o destino que lhe cabia: ir pra’s livrarias, ser vendido, ser analisado, ser finalmente, lido! Já pensaram? Que frustração imensa a dele?!

Depois, fiquei pensando no outro lado, o dos biografados... 

E me pus a imaginar a trabalheira que é tentar reconstruir a vida de alguém por meio de documentos, entrevistas com pessoas que gostavam ou não gostavam do fulano e por aí afora. Esse enxerimento na vida alheia dá o que pensar. E, afinal, quanto de verdade há (haveria) no que os outros falam para os biógrafos?  Sim, pois se a conversa é  com pessoas simpáticas a ele, quantas amabilidades (palavrinha que teima em rimar com falsidades...) não serão ditas?




E, por outro lado: se a conversa é com  a turma dos antipáticos ao fulano, quantas meias verdades não poderão ser ditas com o intuito claro de denegrir a imagem da criatura?


E lá nos arquivos e fotografias e memoriais de família quanto poderia existir de realmente verdadeiro? É claro que dependendo de certas questões que se queira analisar, tudo poderia ser facilmente comprovado ali naquela certidão, naquele contrato... Mas eu fico pensando é no que escapa, no que esta além dali do que se escreveu, se certificou, se fotocopiou e ficou registrado para a posteridade.


Mas... e se a conversa fosse com o próprio fulano? E se, em certo momento, biógrafo e biografado se vissem diante daquela história desconfortável que aconteceu, por exemplo, em 1976 e  se fulano quisesse parecer menos vil do que foi, ou menos mesquinho e mais bonzinho...?


Quebra-cabeças








Pois é: a vida de qualquer pessoa – seja famoso ou anônimo - é um intrincado quebra-cabeças (perdoem o clichê) e eu ouso dizer que é impossível a qualquer um que se disponha -  seja ele de que área for, tenha ele a disposição que tiver -  compor com fidelidade  a trajetória do fulano desde o nascimento até os tempos nos quais a figura se tornou famosa e começou a adquirir aquela aura luminosa que transforma  pessoas até então, comuns, em seres especiais.


Tudo isso se conquista com muito trabalho e bem sabemos nós, os comuns mortais, que o que aparece depois é somente a cereja do bolo, a ponta do iceberg e que nos bastidores, sob as dezenas de camadas de laquê ou de botox ou de photoshop há simplesmente um ser humano que pode sim, ter sido vil, mesquinho; pode mancar ou ter sido mau aluno na sexta série, pode ter mais rugas do que aparenta e por aí afora...

Mas isso ninguém – é claro – quer mostrar.

E é aqui que entra o sagrado direito à privacidade, certo?

Pés de barro



Eu não sei quanto a vocês, mas eu nunca gostei de ler as tais biografias autorizadas; se é autorizada é porque o biografado contou sua versão (que pode ser qualquer coisa, verdadeira ou não), indicou e vetou entrevistados, escolheu fotografias nas quais ele aparece bem e por aí afora. Estas são as biografias chapas branca e nelas os fulanos famosos sempre vão aparecer envolvidos por uma aura de heroísmo, perspicácia, bondade e etc. 

Ali eles nunca serão grosseiros, antipáticos, caloteiros, maus maridos ou péssimos filhos: então, que graça tem isso?!


Pois se a vida de todos nós tem tantas situações variadas – boas, ruins, alegres, tristes, péssimas- e nós, humanos, nos comportamos tantas vezes da forma não esperada porque odiamos fulano que puxou nosso tapete ou porque não conseguimos pagar aquele empréstimo em dia ou não pudemos chegar no horário nem conseguimos disfarçar a antipatia por essa ou aquela pessoa... 




Não é tudo isso, afinal que enriquece a vida (bom, é preciso enxergar assim, segundo a autoajuda rs). Não seriam as nuances de comportamento que tornariam as pessoas, de modo geral, interessantes? Sejam elas o fulano famoso ou o colega que se senta ao nosso lado num curso qualquer?


Então, porque é tão assustador (para alguns) que biografias sejam escritas e que suas vidas sejam devassadas? Eles não queriam tanto estar ali no alto, no cume, no lugar de destaque que os tornariam visíveis para  todos os outros? Pois como explicar aos outros, aos fãs ou não, que pra chegar ao cume foi preciso fazer isso e aquilo? Coisas nem sempre belas e heroicas? Coisas às vezes bem distantes da imagem rósea que o fulano teima em passar?

Mas e o direito à privacidade? Quem pode ou poderia obrigar o fulano a mostrar todas as páginas do livro da sua vida?

Quem?!

Demasiadamente humanos


Pois, de minha parte, eu não me assustaria ao saber que o senhor fulano tem essa ou aquela orientação sexual ou que ele foi um péssimo marido para a senhorita X ou que ele nem viu os filhos crescerem tão ocupado estava envolvido com drogas ou bebidas lá nos anos setenta ou oitenta...




Porque, afinal de contas, todos esses ‘pecados’ são aceitáveis quando a gente se lembra que somos todos, imperfeitos,  não importa se a mídia tenta revestir os famosos fulanos com aquelas auras de quase santidade ou perfeição... 

Ou se ao contrário (porque a coisa é absurda e isso piora quando nos aproximamos dela, da tal ‘fama’) se a imprensa sensacionalista quer dar um tom melodramático a algo que nem teve toda essa importância na vida do fulano (um divórcio, uma morte, uma falência).


O que acontece é que quando alguém é uma figura pública, sua vida – com toda a beleza ou a feiura normais quando se trata de condição humana, certo? – também é ‘pública’...

Ou não deveria ser assim?

É aqui que entra algo que faz toda a diferença: a maneira como o fulano se posiciona diante da fama. Alguns como o fulano que proibiu o livro, adquiriram aquela aura quase mítica que supostamente o coloca acima do bem e do mal, mas lembremos: ele ainda é humano (quer dizer, acho eu rs) e poderia se quisesse, não ter concedido a entrevista ao rapaz e poderia se quisesse ter optado por ficar distante de tudo isso.


Nessa história toda, somente uma coisa é certa: biógrafos têm razão quando alegam que as futuras gerações correm o risco de não saberem nada sobre os fulanos e fulanas que hoje (por exemplo) estão aí ajudando a construir com suas histórias pessoais  o presente (e o futuro que é feito dele) desse país. 

E estão certos também os biografados que alegam ter o direito à privacidade e a contar apenas ‘detalhes tão pequenos’ de suas grandiosas vidas.

Quem poderá negar a eles esse sacro direito?



Não queria estar na pele de um biografado e nem na de um biógrafo, disso eu sei; mas sei de uma coisa: eu nunca – mas nunca mesmo! – gastaria meu suado dinheirinho comprando livros nos quais se vê a frase ‘biografia autorizada’; isso jamais!




CRÔNICA**CRÔNICA**CRÔNICA



Tenho me aventurado a escrever crônicas e vou postar aqui - na medida do possível - algumas delas. A primeira que escrevi é esta aqui,que foi publicada originalmente no site Crônica do Dia. 

Convido vocês a lerem e a darem uma passada lá no site, onde há cronistas de todo país exercitando esse estilo.




A mesma árvore




Todos nós estivemos no mesmo lugar, à mesma hora, no mesmo dia e sequer havíamos marcado encontro. Foi simples e  natural nossa ida àquele lugar sem que houvéssemos combinado.  No domingo das lojas fechadas, algumas poucas abertas; a praça estava cheia de idosos que dançavam músicas antigas dos tempos grandiosos; de crianças levadas pelas mãos de seus pais atentos ou displicentes; e havia ainda o córrego quase transbordante das chuvas da noite anterior e suas águas barrentas e opacas e mais as nuvens carregadas da outra chuva que haveria de cair dali a pouco (como de fato caiu). Era final de verão.


E, no meio de tudo, nós que sequer havíamos marcado encontro, como já dito, nós todos – a família, esse núcleo de criaturas humanas que se assemelham somente porque dividem a mesma origem  biológica – nos espalhamos pelas alamedas da praça, nos juntamos quando a chuva se fez mais forte sob o mesmo teto e eu me lembro das lojas cheias de turistas apressados e ávidos por comprar e comprar - e nós todos, como todos os outros que ali estavam, carregamos nossa solidão conscienciosos como se moradores de um convento secular e pouco nos atrevemos a ir ao encontro de um ou outro de um jeito que ultrapassasse a superficialidade daquele passeio singelo do domingo de manhã.






Foi assim que nós todos juntamos nossas ausências ali, no meio da praça do domingo sob o sol ameno que depois se tornaria chuva incessante e, apesar disso ou justamente por isso, é que soubemos intimamente (e isso é algo secretíssimo, algo que só se conta em invencionices como essa ) que sim, somos de fato e verdadeiramente uma família.

Pois uma família é exatamente isto: carregar nossas solidões sob as intempéries do tempo que recobre o mundo – seja ele qual for - e nos sentirmos acolhidos quando somos fracos, quando estamos sob pingos grossos de chuva sem uma sombrinha velha sequer que nos cubra ou quando ficamos adoentados e, ainda, quando estamos com fome ou quando descobrimos com algum ranço de revolta ou resignação que não há nem nunca haverá remédio para o fato de que nada que se faça nessa vida vai mudar o rumo do que quer que seja – destino? Padrões genéticos? Filosofias rasas ou complexas? Deus...?  – e que, nesse caso, é o fato de estarmos presos de forma definitiva a todos os outros frutos e sementes  dessa mesma árvore: a família.


 Essa árvore de tronco grosso como um jacarandá, um carvalho ou uma paineira; árvore grandalhona e de galhos compridos espalhados – alguns até se encontram  no topo ou nas laterais como que se buscando afoitos em meio à arquitetura algo caótica e deslumbrante das folhas – que florescem nas estações certas (apesar dos pesares), espalham suas sementes pelos chãos e pelos ares; estas árvores quase petrificadas de tão remotas, estes verdadeiros monumentos orgânicos que deixam entrever algo de Deus em suas folhas lustrosas, suas grossas e duras cascas e suas (quase sempre) raras e tão esperadas flores.

Quando vemos uma árvore dessas, assim antiquíssima, mas ainda resplandecendo seiva e frescor, e a vemos envolta por pássaros numerosos e tão diversos como bem-te-vis, anus, pardais ou sanhaços, e percebemos, quase comovidos, como elas oferecem à paisagem dantesca desse mundo o frescor  luminoso de suas sombras bordadas na terra como se pinturas caprichosas e tão delicadas...

...pois quando estive diante de uma árvore dessas num domingo de manhã, entre os meus, foi que pensei que uma família também é (ou deveria ser) como uma dessas grandes (grandes) árvores: um lugar onde o afeto pudesse sempre ser compartilhado de forma serena e nunca (nunca) fosse usado como moeda de troca ou como as migalhas que às vezes somos obrigados a buscar em terras distantes – como passarinhos desorientados -  porque a ‘nossa’ árvore se esqueceu de produzir alimento suficiente para todos.

E, então, se assim fosse, nós todos seríamos como essas aves tão diversas de origens e cantos que voam pra longe – para o sul ou para o leste – que atravessam os céus de sob oceanos e caatingas, mas sempre retornam  para os galhos dessas grandes e acolhedoras árvores.

Uma família deveria ser como as grandes árvores, isso eu pude apreender naquela manhã.
















































sexta-feira, 11 de outubro de 2013

No face até a morte vira ‘curtição’...






Ana Vargas

Ih, lá vou eu falar mal do face de novo e devo admitir minha hipocrisia, pois estou ‘lá’ embora viva querendo sair  e esteja lá mais como observadora do que como ‘entidade’ atuante.


 Mas é que essa semana eu fiquei pensando na bizarrice que é isso: alguém perde a mãe, o pai, alguém que ama, enfim, e coloca em sua linha do tempo ou na imagem pessoal o indicativo LUTO!




Há alguns ‘lutos’ prontos pra usar no Google, basta ir lá,  pegar a imagem  e pronto. Há também mensagens prontas de sentimentos, de frases que se costuma usar nessas horas e etc. (Eis  o grande mercado virtual dos sentimentos pré-fabricados!).
Então, acontece que alguém que conheço perdeu  alguém  e botou lá a imagem de luto... Pois, no mesmo momento, a imagem teve várias curtições (?!).

Isso não parece esquisito? Curtir  o luto não seria, por conseguinte, curtir a morte de alguém?

Que loucura é essa (?) fiquei pensando...

E aí minha mente começou a processar...










Fora de contexto




E me lembrei: quando eu era adolescente a palavra curtir significava simplesmente gostar muito de algo ou gostar demais da conta, gostar, enfim, um quase  ‘amar’ o que quer que fosse. 

Pois é, vejam como tudo hoje parece fora de propósito, sem nexo ou deslocado: quando o face foi transplantado para cá e para o resto do mundo, quem será que se encarregou de traduzir  o palavreado original para a versão brasileira? 




A palavra curtir ficou muito esquisita ali, mas na atual conjuntura, isso é só um detalhe e dos mais insignificantes, certo?


O mesmo (é claro) deve ter ocorrido em todos os países nos quais os gênios (?) criadores da tal rede fizeram suas versões locais: as variações linguísticas foram solenemente  ignoradas e aquela palavra mais usual, uma gíria específica mais comum deve ter sido deslocada para caber ali, no ‘mundo face’  e para tentar fazer com que a ideia se propagasse e, como sabemos, os objetivos foram plenamente atingidos (pelo menos no Brasil e apesar das justas críticas).


Bom, mas nem passa pela minha cabeça (minto, passa sim, mas dessa vez vou ignorar!) desfiar esse novelo de ‘quem, como, por quê...”  em relação à criação do malfadado ‘facebook’ (que acho, está com os dias contados) e suas origens canhestras.


Ao ver a imagem de luto do colega, sendo curtido pensei:   ‘mas não tem nada a ver isso, uma palavra como essa não deveria estar aqui nesse contexto’.

Eu e minha falta de sensibilidade para com as nuances linguísticas da grande criação do século! A pessoa perdeu a mãe e coloca lá ‘luto’ e a amiga vem na melhor das intenções, não sabe o que escrever e então, ‘curte’.

Não é louco isso?!


‘Curti pacas’, a morte do fulano...




Aliás, eu fico pensando ‘como alguém que perde alguém tem ânimo pra ir ao face postar isso, hein? Quem sou eu para julgar quem quer que seja nesse mundo, mas não se trata de julgamento, vejam bem, sou irmanada com todas as esquisitices da minha raça, mas essa eu ainda estou digerindo...


Mas voltando ao que me levou a esse post bobinho (ia falar da fusão da OI com a Portugal Telecom, mas, sinceramente, diante disso, declarei luto!) o que me desnorteia é pensar que a versão abrasileirada do face deveria ter sido criada, digamos, com mais cuidado, com mais apuro.



Sim, eu sei que talvez não valesse a pena (mas a quantidade de usuários diz o contrário, não é?), sei o quanto o face é menosprezado por tanta gente de bem e de valor, pessoas que admiro por se manterem, coerentemente, longe daquele burburinho e etc.


Mas no caso da tal curtição do luto que, por conseguinte, é a curtição da dor e por conseguinte, da morte (se formos aprofundando a bizarrice só aumenta) de alguém, tudo parece se dissolver (no final)  em algo que é simplesmente, uma falta de sentido generalizada.



Parecemos boiar no mar da falta de sentido (boiar, porque o aprofundamento dá um trabalho danado! Melhor ficar boiando...)  e no meio disso até a morte, até a experiência marcante de perder alguém que se ama, quando vai parar ali naquele ambiente raso, até ela (a indesejável, a última fronteira, a temida e por ai afora) se torna simplesmente, um post pra ser curtido.


Tem gente que ao ver posts assim, se enche de comoção e desfia palavras de força e apoio (aquilo que deveria ser falado em velórios, pessoalmente, com toda a sinceridade possível) mas mesmo tais palavras ali, parecem deslocadas.


Porque ali tudo parece ganhar um peso menor ao mesmo tempo que parece ampliar ainda mais a falta de sentido de tudo (da morte, da vida...)? Será que é porque as relações humanas estão tão fragmentadas e superficiais que tudo bem, ‘curtir’ a dor ou  a alegria, a tristeza ou a notícia ruim sobre a violência para com os professores lá no Rio?


Onde iremos parar com tanta falta de sentido sendo insistentemente curtida?



Santidade virtual




Outro fenômeno relacionado com a morte que tem sido ampliado fortemente com as redes sociais é esse: todos os amigos da fulana ou do fulano sabem, por exemplo, que o falecido não foi um bom pai nem bom marido e etc., mas ali, ele se torna exemplar, maravilhoso, ser humano honrado,  nas homenagens feitas pelos familiares.


A gente sabe que quem morre costuma virar ‘santo’, é o que diziam nossos avós, mas veja: quando você faz uma propaganda assim no tal face e você (inconscientemente) planta essa mentirinha inofensiva, até certo ponto,  você sabe que os outros sabem que você mente...


Mas tudo bem, no mesmo instante, muitos haverão de curtir e até de acrescentar algo àquela mentirinha... E assim todos driblam (virtualmente) a morte e ficam ‘felizes’ e mais: mostram essa felicidade pra todos! Não é ótimo, isso?


Pra terminar: tudo isso não é uma grande e tremenda loucura? Daquelas estratosfericamente  grandes? Com todos os penduricalhos pós-modernos que lhe cabem? Com todas as limitadas catalogações psiquiátricas que lhe são adequadas?


Só me resta, diante disso, ressuscitar esse poema – é o meu preferido entre todos os desse poeta genial, porque sempre pensei isso da raça a qual pertenço e claro, de mim mesma:



Poema em linha reta




Fernando Pessoa

(Álvaro de Campos)

[538]


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.



E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.




Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...




Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,




Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?



Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?




Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

É claro que no face não caberiam jamais as sutilezas de um Fernando Pessoa, é claro...
A não ser em posts de citações feitas para fortalecer o ânimo, algo parecido com pílulas virtuais de auto-ajuda, algo para ser lido rapidamente e sem nenhum sentimento refinado.
E isso talvez seja algo bom...
Sim: talvez isso seja bom, prova de que a tal rede social está com os dias contados. Porque uma coisa seria usá-la pra falar de amenidades, encontrar amigos e divulgar questões importantes – esse seria o uso adequado num mundo utopicamente bom – outra, no entanto, é esta que temos num mundo realisticamente imperfeito: para lá foram transferida todas as grandes e pequenas mesquinharias da alma humana.
Mas, tudo bem que seja assim, é  isso afinal, que cabe nesse tempo pra lá de bizarro que estamos vivendo...
Mas, apesar e, contudo: eu que sou humanamente imperfeita até a raiz dos cabelos, ‘eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas’, eu, decididamente, não curto nada a ideia de que a morte seja algo que deva ser curtido numa rede social como um evento público ou coisa parecida.



Arre! Onde há gente nesse mundo (no real  e no virtual)?