quinta-feira, 26 de setembro de 2013

MANIPULAÇÕES



Ana Claudia Vargas


 No Aurélio manipular significa controlar, dominar, entre outras palavras, já no Aulete significa também, 'manobra oculta ou suspeita que  visa à falsificação da realidade (...) 





E então eu me lembrei do titulo de um livro que nunca li, mas o achava instigante: Marionetes de Deus

Naquele tempo (perdido na poeira dos anos) eu acreditava que nós criaturas humanas não passávamos disso, de marionetes nas mãos do criador. E que, por mais que tentássemos ir ‘além’, ficaríamos sempre ali, no raso das coisas...


Mas aí o tempo passa e vamos acalmando o espírito (foi o que sucedeu comigo), estava certo o Nelson Rodrigues ao intimar os jovens a envelhecerem.

Hoje diante do excesso de pós-modernidade (e achando que isso é um clichê dos mais pegajosos) eu fiquei pensando é que Deus perdeu o posto de ‘manipulador de marionetes’ para outro deus: o consumo.

Este sim, é tão poderoso que consegue envolver seus compridos braços visíveis e invisíveis, bem por dentro de tudo o que nos cerca. O deus consumo move as aspirações da maioria das pessoas, mas o problema não é esse: quem não quer viver de forma razoavelmente confortável, cercado de aparatos que facilitem a existência e podendo usufruir de coisas como conhecer aquele lugar dos sonhos, fazer aquele curso que pode impulsionar a carreira ou simplesmente, saber que se algo acontecer de ruim (um assalto, um acidente, qualquer imprevisto) não ficará  ao leu porque possui um seguro ou  um convênio médico? 

Tudo isso é, de certa forma, um benefício gerado pelas vias do  consumo.

Não podemos voltar aos tempos da simplicidade campestre e nunca mais (penso eu) poderemos reviver aqueles sonhos juvenis nos quais pensávamos em viver longe da civilização e de tudo o que ela representa (de bom e ruim). De algum modo, até a pessoa mais distante das capitais estará enredada ou se verá enredada nas teias do consumo, estará livre disso apenas aquele que escolher, de livre e espontânea vontade, morar num convento, num mosteiro, ou seja, em alguns desses lugares que existem para oferecer  outros modos de vida aqui na terra. Estar nesses lugares é talvez como viver em redomas e ali sim, o deus consumo não terá poder nenhum por que todos conscientemente (isso é essencial) buscam o ‘outro’ Deus. Estão imunes.

Pois é, mas enquanto estamos aqui, fora da redoma, devemos ficar  atentos para que o consumismo desenfreado não  turve a nossa visão de mundo.


Mas quantos estão preocupados com tudo isso e quantos têm consciência disso?



Contaminações




Tudo isso veio à tona, digo, chegou aos meus fracos neurônios, primeiro, motivada pelo certeiro artigo do amigo Paulo Santos sobre manipulação e depois  porque li sobre a influência que as tais ‘princesas’ (aquelas personagens da Disney que estão em todo canto) exercem sobre as meninas do nosso tempo.



Houve um tempo em que fábulas existiam simplesmente para fazer sonhar as crianças...







E sim: é aquela mesma velha história dos tais padrões limitantes que são impostos às mulheres (e aos homens e etc.) desde sempre: a questão da beleza, em primeiro lugar, e de certas qualidades que tornariam uma pessoa socialmente aceitável.


No caso das menininhas que gostam das princesas Disney por meio, não dos filmes ou desenhos, e sim, primeiramente, das mochilas, roupas, batons e de toda a parafernália que é feita em torno das ditas cujas; está claro que apesar de todos os avanços modernosos da nossa ‘muderna’ civilização, o que se impõe a elas é o mesmo pensamento raso que existe desde sempre: mulheres tem que ser bonitas e magras e precisam se casar para que existam socialmente.


Está tudo lá na pesquisa que a antropóloga Michele Escoura Bueno fez: hoje, em pleno século 21, com todos os avanços tecnológicos que temos ao nosso alcance, com todos os estudos comportamentais feitos por ‘n’ pesquisadores renomados ao redor do planeta que dizem que somos nessa altura da evolução, uma raça mais esclarecida e sábia e apta para avanços ainda maiores e impensáveis...


Pois, apesar de tudo isso, as meninas estão sendo educadas para achar que só serão felizes quando casadas e os meninos, que só serão felizes se conquistarem uma moça, de preferência, bonita e magra.




...mas, então, eis que a indústria descobriu que podia manipular todo o simbolismo de uma fábula  como a da Cinderela....

Por trás desse tipo de comportamento talvez estejam pais que não tem tempo de orientar suas crianças e engolem o que a mídia televisa e etc. vende como sendo o modelo de felicidade e nisso está, certamente embutida a ideia do “compre a mochila, e o brinquedo e o vestido e o batom e veja o filme” (e sim: a ordem do 'processo' é essa).


E assim, mais uma geração vai sendo criada para daqui a não sei quantos anos, impor aos filhos, o mesmo modelo limitado de pensamento.

E em tudo isso o que se vê é o braço da manipulação midiática que, visível ou invisível – nesse caso, bem escancarado - vai moldando mentalidades, perpetuando ideias preconceituosas de pais para filhos e contaminando a ingenuidade das crianças.


Que as meninas gostem das princesas, mas que também gostem de livros, de outros tipos de filme que não somente os da Disney  e que cresçam com a mente aberta para todas as boas possibilidades de serem pessoas vivendo  nesse mundo: seria bom se assim fosse.


Acho que aí sim, todos nós poderíamos ser ‘felizes para   sempre’ como nos contos de fada da Cinderela, Branca de Neve, Gato de Botas, Chapeuzinho, João e Maria...

...e aprendeu a transformar 'abóboras' em milhões.


A matéria



Ilustrações (domínio público) : Gustave Doré -  Para ver mais ilustrações fantásticas desse artista do tempo em que fábulas eram somente fábulas:





               Os quatro pilares da manipulação 

                                                                           Paulo R. Santos*



Atualmente existem quatro formas bastante eficientes de se manipular as pessoas: o medo, a culpa, a ambição e as drogas.

- Através do medo o Estado se impõe quase sem esforço. Assaltos, crimes vários, crise de  legitimidade, falta de confiança nas instituições, ausência de políticas reais de saúde e de educação, democracia meramente formal, impunidade etc. Os 'donos do poder' podem, assim, aumentar seu aparato repressivo e autoprotetor sem grandes resistências por parte da população. Haja vista o aumento de gastos e do efetivo de 'robocops' e pretorianos com os quais as excelências se cercam para se proteger da população e, é claro: a política de segurança pública nesse cenário, é um mito;

- Através da culpa as diversas crenças mantêm os 'fiéis' sob controle, seja para conservar o rebanho no pasto próprio, seja para impulsionar os ganhos financeiros. A culpa é um sentimento forte demais para ser vencido sem ajuda ou  determinação. Romper com uma estrutura que se aproveita dessa emoção não é coisa fácil;







A imagem mostra antigas marionetes que eram usadas nos primórdios do teatro: talvez a realidade atual seja um tremendo faz de conta e a 'arte da manipulação' é que mantenha todos os atores (nós?) em seus devidos papeis... (Imagem - Domínio Público)



- A ambição é o recurso do capitalismo hoje baseado no crédito & consumo. As pessoas compram um, depois dois e em seguida quatro de qualquer coisa, mesmo que não precisem. Imagine toda uma sociedade fazendo a mesma coisa? A jogatina oficial patrocinada pelo Estado, os diversos jogos e apostas, o estímulo ao ganho fácil também reforçam esse meio de controle pelo sonho de subir na vida sem nenhum esforço;



- O tráfico de drogas e de armas responde por nada menos que um terço do dinheiro que circula no atual sistema. Evidentemente, só a base dessa pirâmide obscura aparece. É o chefe do tráfico local, o distribuidor etc. Mas, os verdadeiros controladores do 'negócio' estão acobertados por ternos e gravatas bem visíveis  e costumam estar bem postados nas tramas do sistema político e das corporações de todo e qualquer país. São os tais 'big boss', os gângsteres, os chefões …  psicopatas e sociopatas que transitam com liberdade entre países e corporações e que podem assim, continuar buscando formas de impulsionar seus lucrativos negócios.



Agora pense numa combinação desses elementos, veiculados insistentemente por uma mídia comprometida com o grande capital e dependente dele e você terá a realidade atual.


* Paulo R. Santos é sociólogo.





sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O ' problema' do turismo


Ana Vargas


“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa." (Ítalo Calvino)



Abra o jornal e veja: a indústria do turismo não para de crescer. Leia naquela revista de negócios: agências de viagem, companhias áreas, empresários do setor hoteleiro, todos louvam (com razão) esse crescimento. 


Fazenda, quer dizer, 'castelinho' ...


Agora (para desgosto dos elitistas), até as pessoas de menor poder aquisitivo podem conhecer a Europa, o sul do Brasil ou o Nordeste, os States ou o ‘maravilhoso’ Rio de Janeiro. É bom que mais  pessoas possam viajar e conhecer outros lugares, outras formas de viver por meio, por exemplo,  da gastronomia de cada região e dos tantos outros hábitos específicos de cada povo.


Como tudo isso é justo e perfeito e como a vida parece leve mesmo, quando a sentimos sem o estresse dos lugares em que vivemos nossa vida rotineira feita de contas a pagar,  burocracias, doenças, daquele teste que está nos tirando o sono e etc.. Acontece que quando viajamos com o único objetivo de descansar e nos deixamos envolver apenas pelo prazer de conhecer outro lugar, a vida real parece entrar no modo ‘pause’, em suspenso, e tudo aquilo que, de alguma forma nos oprime, se evapora. 
Vale dos quilombos

Simples.

Mas eis que eu, que acabei de voltar de uma viagem dessas, fiquei pensando foi assim: por que apesar de todos os benefícios econômicos, culturais, sociais e outros mais gerados pela indústria turística e por que apesar de achar muito legal que mais pessoas possam viajar e ‘ampliar horizontes’ – como dizem os clichês do marketing dessa área – por que, afinal de contas, visitar os tais lugares turísticos parece a mim, algo perfeito demais, limpo e asséptico demais, em resumo, algo que parece até  insosso.





Pois as cidades fadadas a abrirem seus espaços para os viajantes de outras terras têm todas um quê de falsa simpatia que as torna, como direi, artificiais. Não sou nem de longe, alguém que viaje muito, pelo contrário, estou entre os que somente a pouco, puderam se dar a esse luxo, mas quando estou em lugares assim, ‘arrumados para turistas’, me sinto como se enganada. 

Aquilo ali não é a realidade real: foi criado para ‘o turista’. Antes da chegada deles, houve reuniões empresariais e os ‘grandes’ do lugar pensaram em maneiras lucrativas de fisgar os muito desejados turistas, e eles também pensaram em como transformar esse ou aquele ponto da cidade em coisa chamativa e juntaram no mesmo saco festas tradicionais e congressos, entregas de prêmios ou o que quer que seja e fizeram parcerias com hotéis, restaurantes e lojas de artesanatos e por aí afora.

Mas nada disso importa e sim: que venham os turistas!


Fundos da fazenda ponto-turístico 





Até o passado é vendido...




Não: nada há de errado nisso. É preciso que empregos sejam gerados e as regiões que possuem paisagens lindas – montanhas, praias, vales, dunas – e culturas criativas (com danças típicas e  artesões dedicados): tudo isso merece sim, ser visto e deve sim, gerar dividendos. Não sou contra nada disso.

Mas eis que as pessoas se esforçam demais para agradar porque o gerente do hotel está ali olhando, eis que é preciso ‘aproveitar’ aqueles cinco ônibus da agência vcc que está chegando e é preciso oferecer, em tempo recorde, todas estas toalhinhas bordadas, aquele cesto e o doce dessa fruta que só existe aqui nesse lugar.




E então, verdadeiros batalhões de gente com cara de metrópole, descem dos ônibus e passam velozmente pelo riacho tão belo assim, com a manhã sobre suas águas, mas muito poucos notam ou podem se dar ao prazer de notá-lo  e ele  continua correndo suavemente para o rio, pois  assim o faz desde que nesse lugar morava somente uma família, isso há mais de cem anos, que vivia aqui sua vida rotineira e repleta das chatices das quais se quer fugir quando se viaja assim, por prazer.

Hoje aquela rotina se transformou em coisa agradável porque lá vêm os turistas e é preciso paparicá-los... A bisneta do senhor de barbas longas ali do quadro foi estudar fora do país para aprender  a transformar a fazenda local de trabalho em fazenda ponto turístico. Todos vestem uniformes e em cada canto há uma lojinha que vende uma infinidade de souvenires: imãs, cestinhos, bichos, camisetas, panos de prato e o que mais a imaginação inventar.




Para turista admirar...


Eles, os ‘deuses’ turistas



Mas do mesmo modo que vieram, lá se foram, eles, os turistas. Alguns levaram fotografias tiradas sempre deles mesmos diante daquela igreja antiga, daquele moinho centenário, daquele muro de pedras antiquíssimo; poucos se interessam em saber (mas também não haveria tempo, há muito para ver, e é preciso correr para ver tudo em minutos! 

Agentes de viagem berram quando alguém, envergonhado, se atrasa) mais sobre isso ou aquilo.

Sob a chuva e o frio: cenário de sonho




E é nisso que se transformou a indústria do turismo: em pacotes de viagens que empacotam pessoas que vão assim, empacotadas, para lá e para cá, vivendo o frenesi de  viajar, conhecer ‘aquele’ lugar, aquela praia...aquele ‘resort’...

E fica a pergunta: quantos apreendem algo do tudo que veem?

E se eles quisessem apreender, seria possível? Conversar com a moça do hotel que sorri e é simpática ao extremo não é o mesmo que conversar com o velho triste que se sentou no banco da praça e mora ali naquela casa tão velha quanto ele há mais ou menos sessenta anos (e ele teria tantas histórias pra contar...)

A cidade histórica ou modernosa vira somente um pastiche: se há um evento cultural é preciso capitalizar insistentemente sobre ele – e dá-lhe fotos de celular para colocar no face ou sei lá onde com o famoso da vez que, ‘por acaso’, está por ali naquele evento...Não, não foi a prefeitura nem o empresário X que o pagou, imagine...


Segredos e verdades: as cidades são



Por trás das folhas...




Toda cidade, todo lugar desse mundo deveria ser especial porque tem sim, algo naturalmente especial: pode ser a famosa Paris ou a anônima Cedro do Abaeté (que conheço bem e comprovo que é linda); pode ser São Paulo ou São Luiz; porque toda cidade ‘ é igual a um sonho’, um ‘quebra cabeça’, como bem nos lembra o autor desse livro maravilhoso – Cidades Invisíveis – o escritor Ítalo Calvino.

O riacho desde sempre corre para o rio...
Andar por elas em dias comuns, conversar com uma pessoa mesmo que essa pessoa não esteja num bom dia e precise de alguém que a ouça, pode descortinar um mundo de belezas comoventes. Nenhuma cidade precisa ter praças remodeladas pelo arquiteto famoso ou lojas fantásticas ou eventos glamourosos para que se queira estar ali. Há muito mais sob essa estrutura rósea e asséptica criada pela turismologia (que é boa, gera empregos, mas tem esse lado, digamos, obscuro).





E assim quantos encantos verdadeiros podem se perder se o incauto viajante, ops, turista, for do tipo que visita lugares como quem só enxerga a superfície plana e inodora que a indústria criou para fomentar as viagens, os pacotes, os eventos e etc. e etc.


Todos os cantos dessa terra são feitos de mistérios e segredos e verdades (sim: verdades) que são aplainadas ou pior, ‘coloridas artificialmente”, quando  a palavra ‘turismo’ se faz ouvir.


Nessa hora é bom ficar atento, procurar outros cantos, ouvir outras histórias, descobrir outros sabores e apreender os ares verdadeiros de cada lugar, porque é só isso que vale a pena levar, certamente de qualquer lugar que se  visita.

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Eu já estava achando que era neurótica por ter esse tipo de pensamento tão 'chato' em relação ao turismo, e então, eis que chega ao meu e-mail a newsletter da Agência de Notícias da USP com essa matéria (veja no link) e acho que isso foi um 'sinal' de que eu devia postar o que havia escrito rs

Há outros 'neuróticos' como eu por aí, e eles são da 'academia' rs.


Imagens: serra gaúcha (um lugar muito bonito mesmo, uma gente muito educada, aqueles campos de 'O Tempo e o Vento' do Érico Veríssimo, tudo bonito demais para que seja apenas comércio de lugares a se visitar).