quinta-feira, 18 de abril de 2013

Aquele olho do Bowie



Ana Vargas

Diretamente da minha camiseta...


Quando era ainda um molecote – e eu o imagino bem branquelo, quase rosado como são as crianças inglesas que vemos em fotografias ou filmes – ele levou uma surra que o deixou quase cego de um olho e ficou, por isso, alguns meses acamado. Talvez tenha sido durante esse tempo de dor e raiva ou resignação, que ele tenha construído lugares mais agradáveis para viver aquele seu resto de infância de um jeito mais fantasioso e, sobretudo, seguro.
O mundo pode ser um lugar terrível  para todos nós, mas é pior para com as crianças.
Então, ele deve ter começado ali – de forma inconsciente, penso – a erigir o que seria sua pedra de toque, aquilo que a gente tem de mais nosso, aquilo que nos define de uma maneira genuína e verdadeiramente plena e essa definição é tão perfeita porque nasce também da dor, da humildade que somos forçados a adquirir nesses momentos; da capacidade que brota em nossa alma de simplesmente aceitar: o que quer que a vida traga, aceitar (e isso como se sabe é bem difícil e, alguém que fica  meses numa cama é certamente forçado a isso).
Depois ele disse que seu olho ferido adquiriu uma cor diferente daquela que tinha antes e isso é bem bizarro (como a vida é)  e então, ele foi crescendo e agregando em si, aquilo tudo que existe e que está fora dos padrões, dos sistemas, das margens e fronteiras sociais, afinal, não fora lá, no ‘mundinho’ esquematizado de uma escola que ele sofrera a violência que o faria quase perder a visão de um dos olhos?
Será que foi ali que ele adquiriu a capacidade de enxergar outras coisas para além da real realidade?
Isso foi há tantos, tantos anos; e ele, esse cara; como pessoa do seu tempo (mas inexplicavelmente, sempre à frente dele) só poderia se tornar mesmo um artista porque apenas as criaturas que vivem da arte (seja ela de que tipo que for, mas somente quando feita de maneira intensa) conseguem ultrapassar a rotineira banalidade das horas e dos dias às quais estamos todos submetidos.
Daí eu fico pensando: será que foi por isso que ele criou o Ziggy? Será que ele pensou em ser um extraterrestre para que assim pudesse se libertar de todas as formalizações sociais que aprisionam a todos – todos: desde um aborígene australiano a um homem de negócios sul-americano – em limitadas visões mundanas?
Talvez... talvez... É absolutamente impossível e inútil querer entender o que se passa na cabeça dele e para que faríamos isso? Não é esse o objetivo desse texto.
O fato (bem agradável) é que ele está aí; sua música atravessou décadas e se tornou atemporal como acontece com o que é feito de uma matéria que mistura imaginação fértil, criatividade pujante (mas sofisticada, seletiva), muita melancolia,  bastante erotismo (sem vulgaridade),  revolta e também e porque não?;  virtudes como humildade – pois ele não é do tipo que ‘se acha’; ele sempre parece querer ser menos do que é quando concede suas raríssimas entrevistas -  generosidade – ou alguém duvida que cada uma de suas músicas não foi composta como se ele quisesse oferecer aos outros alguns instantâneos da poesia e da beleza
que ele deve enxergar com aquele seu olho que ele quase perdeu lá nos idos de sua remota infância?

Homem de gelo
Agora ele voltou depois de dez anos sem dar as caras e muita gente comemora seu retorno e  alguns fatos sobre ele têm sido relembrados.
Por exemplo: em 1972 ele disse numa entrevista que se sentia como um “homem de gelo, meio alienado andando por aí” e isso não deixa de ser bem estranho em plena efervescência hippie; em 1987, ele disse  estar mais alegre do que jamais fora (isso dito no final da tal  década perdida, a era dark  e sombria e o pior:  cheia de yuppies também soa contraditório).
Já em 1999 ele disse não se achar de modo algum, inteligente (a humildade...a humildade) e se lembrou de um sonho que teve aos quatro (!!) anos de idade, nesse ano ele disse ainda que tinha o hábito de  transcrever seus sonhos (eu sempre pensei que havia muito de mundos sonhados em suas canções e me lembro do clipe de ashes to ashes e daqueles cenários oníricos meio angustiantes mas carregados de lirismo).
Nos anos seguintes, ele foi falando algo aqui e ali, sempre dando a impressão de que não estava ‘ali’ de fato, sempre parecendo olhar as coisas como se estivesse em um farol ou numa nave acima delas.
Pois o mundo grandioso e farto de tantos acontecimentos belos, estranhos, felizes e tristes, continuou muito antes dele e  de qualquer pensamento dele, meu, de todos nós; a engendrar as milhares de situações que podem parecer banais para a maioria de nós mas não são para aqueles que como ele, conseguem enxergar além da realidade ‘real’.
E o fato é que esse cara agora tem quase setenta anos e eu penso que ele deve ser um grandessíssimo chato para alguns que já tiveram a oportunidade de trabalhar e conviver com ele e me lembro de ter lido aos 16 que ele já usou tanta droga que é um milagre que tenha sobrevivido. Ele, nesses perfis feitos em revistas de música  ou generalistas  é mostrado sempre de um jeito endeusado e oco, como se ele fosse um ídolo, um ícone ou algo assim e é claro que, para muitos, ele é isso mesmo mas, penso que vê-lo o assim não lhe faz justiça, na verdade, o reduz e o torna apenas mais um artista.

Tardes ruins
Tudo o que a indústria musical construiu em torno dele e claro, com sua adesão total, mas também com sua lucidez  – afinal  ele se erigiu em cima de seus defeitos e dores e ‘tardes ruins’ como disse também na entrevista de 1972 – tudo o que ele permitiu que fosse vendido de si mesmo para a massacrante indústria midiática, no entanto, não o tornou uma personagem falseada e vazia como aconteceu com tantos outros que surgiram quando ele também  surgia.
Esse cara conseguiu, de um jeito que merece apreço, ser o rosto de um tempo que vem, desde o fim da década de 1960, se deglutindo, se consumindo; como se aquela enigmática esfinge propusesse a si mesma, incessantemente, mais e mais charadas nunca esclarecidas, impossíveis de ser esclarecidas, enlouquecedoras até.
Pois ele, com seu olho estilizado de extraterrestre engraçado, louco ou os dois, do tipo que viria a terra não para nos humilhar, e sim, para nos trazer algum alento; pois ele conseguiu permanecer e se tornar quase que um símbolo do quanto a música – e o rock, mais precisamente, porque é o que toca esse meu coraçãozinho pós-moderno e farto de tanta música ruim  – consegue –  e eu realmente acredito nisso – tornar a vida suportável e essa é uma qualidade deveras rara e preciosa nesses nossos tempos globalizatórios  que transformam mediocridades em genialidades e passam por cima das identidades – culturais, sociais e outras mais – como se fossem  uns tratores (ditos) civilizatórios.
(Lembrei de Let’s Dance e do clipe oitentista que de  certa forma  ‘fala’ disso)
Acho que ele, esse cara,  não foi um artista construído na ante-sala de uma produtora ou saído da cabeça de algum ‘empresário’ musical; acho que aquele olho esquisito dele certamente tem mais a ver com o que ele se tornou do que qualquer genial ideia midiática teria sido capaz de criar.
 Aquele olho do Bowie ainda é capaz de deixar a gente achando que não saiu dos dezessete anos, e, ainda que isso soe como atestado de imaturidade, acho que a volta dele deve ser comemorada por todos nós (quarentões ou não) que acreditamos no poder que a (boa) música tem de fazer com que a vida se torne leve e divertida.
Diante disso só me resta dizer: seja muito bem vindo, David Bowie!


Gerais de Minas


CONVERSA DE MINEIROS SOBRE O CLIMA*

                                                                                                                 Paulo R. Santos

- Cadê a chuva, parceiro?
- Num sei! Começaram a falar em mudança climática e a coisa aconteceu mesmo  ... parece.
- Viu o ribeirão dos coelhos? Num dá um parmo d’água ...
- É,... a plantação de milho já se foi. A de mandioca se aguenta, pois a planta é forte, mas num sei não ...
- E se para de chovê, meu cumpadre? Que acontece com a terra e com a gente que depende dela?
- Num para de chovê não, mas pode fartá  água pra muita gente. Estão vigiando cada olho d’água que brota da terra,... tem que ter licença, controle, e coisa e tal e tal e coisa ...
-Pois então,... sem água num tem plantação de coisa nenhuma ... os bichos se vão, as planta morre, ... onde já se viu pomba trocal e rolinha ir morar na cidade, home? Já viu os fios de eletricidade lá na cidade? De tardinha fica cheio de bicho que antes só se via na roça!
- E tem gente que bota fogo no mato, e a bicharada começa a aparecer mesmo nas casa de cidade, ... até cobra dentro de panela já passou susto em cozinheira, moço!
- Olha !?
- Verdade! A dona Maria, do Zé do Alfeu, saiu feito doida de casa pedindo socorro pro vizinho, pra tirá duas cobra de dentro da panela de fazê arroz. Ele chegou e viu as duas cobra coral enroladinha lá dentro. Tinham fugido do mato durante a noite e se aboletado dentro da panela, pode?
- É,... tem aparecido de tudo nas casa. Tem rato, lagarto, cobra, e até gavião prefere ver o que tem no lixo da cidade!
- Enquanto isso, o cerrado vai se esvaziando de gente e de bicho por falta de condição de vida. E ainda tem o perigo dos assalto, moço! Agora que é proibido carregar um estilingue ou até um canivete, fica fácil pros amigos do alheio!
- Que fazê?
- Sei não ... rezá, eu acho. Só Deus pra mudá esse mundo doido. Num tem ipê, pequizeiro, um pé de jatobá ou de manga que aguente isso. Até as fruta vão minguando, ... ficando pequenininhas ...
- Tem fogo aí, parceiro? Brigado. Um cigarro de palha resolve...,  por enquanto.

* (grafia reproduz o linguajar típico das Gerais)

Paulo Santos é sociólogo e morador de Divinópolis e sabe do que está falando ou melhor, escrevendo rs

Um comentário:

Anônimo disse...

Aqui, no Alto da Lapa-SP, aonde trabalho, há tantas maritacas e pássaros esperando que alguém os alimente... Eu penso sempre que há tantos outros lugares tranquilos e bonitos para pássaros, com árvores frondosas, riachos... se eu fosse pássaro era lá que eu gostaria de estar...
Mas, agora lendo essa crônica é que "caiu a ficha" - esses lugares tranquilos e bonitos estão cada vez mais raros.

Anamaria